sábado, 15 de novembro de 2008

Purgatório


Lugar escuro e tenebroso. Quente. Frio. Frio de calor humano. Pessoas sujas. Sentimentos sujos. Expressões limpas. Pessoas nuas, desmascaradas. Não há recompensa, não há gratidão. Sem cumprimentos, boas maneiras, convenções. Sem moral forjada. Sim, um lugar amoral! Habitat da máxima manifestação do auto-retrato. Percepção nua e crua da natureza egocêntrica do homem. Pessoas feias. Você é feio! E eu posso dizer isso! Você é desprezível, asqueroso, um verme. E eu passei a minha vida inteira sonhando em dizer-te isso! Não tenho credores, não obedeço a ordens, não tenho chefe ou nenhum outro ser inferior que se digne ser chamado superior hierárquico. Ah, a liberdade... Finalmente a independência. Homens iguais. Verdadeiros. Mundo real. Purgatório: Paraíso Divino. Amém.

Coração de Diamante

Ouvi dizerem “coração de pedra”.
De pedra sim, mas pedra preciosa. Um tesouro praticamente inconquistável.
Caro. E raro. Tão raro quanto os humanóides que têm a proeza de possui-lo em suas mãos.
E sabem de uma coisa? Somente outro coração de diamante tem o condão de poli-lo. Deve ter dureza igual, ser forte e tão impetuoso a ponto de encará-lo.

A rainha carece de um rei. E que seja um bravo, dignamente capaz de desbravar o que habita de mais temeroso neste coração de diamante.
É só assim, neste encontro de indubitável realeza, que toda fragilidade vem à tona, contrastando com a dureza que dantes permeava os arredores diamantinos.
E o coração de diamante por fim reluz, mostrando ao mundo toda a pureza de sua essência constitutiva.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Antítese do Encontro

Tentei escrever e não consegui.
Meus versos latejam, mas não se desprendem
Tudo ao meu redor é névoa
Os demônios vagueiam, não mentem.

Reflexo de mim no espelho
Contemplo um quadro de beleza vibrante
Espelhos, criações emolduradamente humanas
Anteprojetos que mascaram o real perto-distante.

Montagens programadas para o belo: não as quero!
Saio à rua, ao encontro de Mim
Em um córrego, miro a minha imagem desnuda
Figura disforme; ilusão: chega-te ao fim!

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Acidente-se na acidez

Eu gosto do que faz mal. Do que desgasta e revitaliza.
Consome minhas forças, dilacera minha carne, entorpece-me, aniquilando-me pouco a pouco de uma existência enfadonha e tão material.


[...]

Ah, o sangue que jorra...! Seu sabor tornou-se o combustível de uma alma pálida.
Feridas costuradas com ópio, anestesiadas com morfina.

Cicatrizes que não saem.
Estigmas.
[Indolores]






E que me perdoem os românticos

Na salinha de espera
Aguardo com tensão
Se ainda terei a chance
De ganhar teu coração.

Se eu ganhar, se eu ganhar
Esse coração pra mim
[Permitam-me uma hipérbole:]
Meu contentamento não mais terá fim.



segunda-feira, 18 de agosto de 2008

NÃO, EU NÃO PÁRO.

P A R A R Á
P A R A R A R Á
P A R A R Á
P A R A R
P Á R A
P
A
R
E
I
P A R A R Á
P A R A R A R Á
P A R A R Á
P A R A R
P Á R A
[...]

Num lugar qualquer, numa hora qualquer, uma conversa qualquer.

“Primeiro estranha-se. Depois entranha-se.” (PESSOA, Fernando)


[...]

A: Estranho, você.
B: Eu?
A: Sim.
A: Nunca vi uma pessoa que gasta duas semanas pra comer uma caixa de bombom. Ainda mais mordendo e guardando o restante pra comer depois!
B: Claro, oras! Se eu gostei do bombom, por que comê-lo todo de uma vez? Como um pedaço e embrulho novamente o restante pra comer depois, quando tiver provado outro.
B: Você nunca parou pra se perguntar por que os restaurantes franceses servem porções tão pequenas e que são tão apreciadas? É justamente pro freguês ter mais tempo pra degustar. São pequenas proporções de prazer, como eles dizem.
A: [Risos]. Que nada, eles são é muito espertos, isso sim. Os restaurantes franceses daqui usam esse discurso só pra faturar. Eles imitam o que dizem os chefs franceses e muitos fregueses acreditam.
B: É, pode ser. Mas eu ainda prefiro comer minha caixa de bombom à prestação! E pior é você, que assiste a um filme voltando mil vezes à mesma cena.
A: O que é perfeitamente explicável! Esses filmes de hoje têm um enredo tão acelerado que se a gente perde uma cena, já compromete boa parte.
B: E às vezes até o final do filme.
A: Pois é. Por isso que não vou mais ao cinema. Já gostei muito, mas hoje em dia prefiro baixar meus filmes da Internet ou comprar os “genéricos”. Aí posso voltar e assistir quantas vezes quiser.
A: Gosto de prestar atenção nos detalhes, na expressão dos atores, nas paisagens, na fotografia do filme...
B: Nossa, cê deve gastar umas 3 horas pra assistir a um filme de 2!
A: Até mais do que isso!
B: [Risos]
A: Ah!
B: Hum.
A: Cê ta sabendo do Festival de Cinema que vai ter semana que vem?
B: Claro! Vou na quarta-feira assistir “As Invasões Bárbaras”. Sempre tive vontade de ver! Vou aproveitar que a entrada é livre...
A: Jura que cê vai na quarta? Tava pensando em ir também. Já assisti “As Invasões Bárbaras”, mas foi na casa de um amigo e queria rever umas cenas. O filme é uma pancada. Ganhou Oscar de melhor filme estrangeiro.
B: Então vamos! Aí você me faz companhia e a gente discute sobre o filme depois. O Festival é por temáticas. E a desse dia é: “A Desconstrução de Ideologias”.
A: Interessante...
B: Pois é. Acho que ideologia é algo que tá sempre em construção e desconstrução.
A: É. A ruptura de um conceito ideológico, quando acontece, cede espaço a outro, por mais que essa dinâmica não seja das mais velozes. Às vezes chega mesmo a ser imperceptível.
B: O importante é conservar os valores.
A: É, e o filme também fala disso.
B: Poxa, queria poder ir num outro dia também. Mas minha semana tá cheia. Ainda tenho que ler Dostoiévski pra apresentar um seminário no final do mês.
A: Humm. Qual livro?
B: Crime e Castigo.
A: Ah, já li. Muito bom. Tenho-o aqui na minha estante. Se você quiser...
B: Eu quero sim! Cê me empresta mesmo?
A: Claro. E tenho certeza que você vai gostar. Levo na quarta-feira. Que horas você vai?
B: Vou pegar a sessão das 18:45, porque tenho aula até 18 horas.
A: Ótimo, esse horário dá pra mim.
B: Tá ok, então. Aí depois a gente toma um cappuccino naquele café ao lado.
A: Isso! Eu adoro o cappuccino de lá.
B: Eu também. Com torta de chocolate então...
A: Ah, nem me fale...
B: Então tá combinado! Agora tenho que ir, senão chego atrasada.
A: Tá certo. A gente se vê na quarta. Tchau, estranha!
B: Tchau,
estranho.

**


Começa com o espanto. O predecessor do conhecimento. E enfim, quando surge o desejo de conhecer, as almas já parecem mais próximas.
Primeiro estranha-se. Depois entranha-se.





sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Bela e Adormecida


















Em algum lugar escuro
Sem estrelas, sem luar
Onde o sol pede socorro
Implorando p’ra brilhar.

Ali, a Princesa Desalento
Agrilhoada por seus próprios demônios
Castiga-se em um mundo vazio
Por medo de arriscar seus sonhos.

Definhando ante o entardecer, [pacientemente]
Ela contempla os minutos, as horas.
“Mas, por que dentro de ti, consentes
Que enquanto teus lábios sorriem, tu choras?”

Princesa Desalento, Castelo Desencantado.
Sua opção tomou-se por sorte
A luz cega-lhe a vista
Liberdade é sinônimo de morte.